Blog do Carpinejar

CAMPINHO DE PICHE

O campo de futebol da Escola Municipal Imperatriz Leopoldina, no bairro Petrópolis, era de piche e brita. As pedras saltavam do solo escuro da quadra, pequenas lâminas refletidas pelo sol.

Eu sabia o quanto custaria qualquer queda. E não havia partida, sempre empolgantes e aflitivas em busca do escore, em que eu não caísse fragorosamente e esfolava as pernas. A textura da carne se esticava em arranhões e me conformava com o que tínhamos e com o que podíamos.

Suportava a desvantagem do campinho. Não parava o prazer de futebol pelo sofrimento antecipado. Levantava os prós e os contras, fazia um balanço do suor e seguia com o hábito de me reunir com os colegas por uma meia hora de chutes e cabeceios.

Não jogo mais bola na escola, mas permaneço me raspando todo na vida. A diferença é que não uso mercurocromo, não sopro as feridas, não coço as casquinhas antes da hora. O que mudou é que fico em carne viva por debaixo da pele. Às vezes, não encontro uma posição para dormir.

Não tenho controle sobre os fatos. Com o tempo, a vida é cada vez menos minha. Como se eu precisasse me conformar em apenas limpar a ferida para não infeccionar.

É a morte de um amigo, é a doença de um familiar, é o egoísmo de alguém próximo, são o desentendimento e a briga com quem amamos, é a velhice preocupada dos pais. Mobilizo a maior parte de minha rotina em situações imprevisíveis.

Acordo de manhã disposto a jogar, mas vivo sendo arremessado ao chão, o sangue não tem tempo de escorrer e já estou de novo em pé. Não é teimosia, masoquismo, mas amor inexplicável pela sensibilidade.

Não deixo de sentir porque sofro, é por sofrer que me torno ainda mais sensível e entendo quem se machuca e estendo a mão para ajudar a levantar e seguir em frente, respeitando tudo o que foi experimentado lá atrás, na infância de meu futuro.

Acho que venho me acostumando a me despedir. Não somente dos outros, mas de mim mesmo. É uma longa aceitação desde a infância, desde os cambaleios no piche. O meu possível é o meu melhor.

Continuar, eis o que posso fazer. Com a curiosidade pelo placar até o último minuto. Sem reclamar das pedras, que não têm culpa de meus tombos.

Publicado em Jornal Zero Hora em 07/04/17

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