Blog do Carpinejar

DE CABEÇA PARA BAIXO

Arte de Tereza Yamashita


Só lembramos quando vivemos de novo.

A lembrança não dirige, toma carona.

Limpei a gola do abrigo do filho Vicente na saída da escola. Reluzia uma mancha branca perto do zíper. Ingênua espuma da pasta de dente. A escovação apressada para não perder o sino de manhãzinha, natural estar ali, ressequida depois da aula. Um giz de cera dos dentes. Tantas vezes estudei com círculos polares no uniforme. No almoço, minha mãe raspava com sua unha vermelha e dizia: Vamos arrumar esse homenzinho? Vamos?

Homenzinho? Eu gostava de ser homenzinho. Nunca me chamavam de menino, de piá, de guri, mas de homenzinho. Eu me sentia tão homem como homenzinho. Armava caretas para firmar compromisso. Evitava rir, rir apenas me rejuvenescia. Concentrava-me para irradiar uma cara séria, com cenho franzido. Imitava meu tio Otávio que fumava cachimbo.

Nunca estamos na idade que desejamos. E tememos o que os outros vão pensar da gente. E tememos mais o que pensamos dos outros.

No aeroporto, entre uma de tantas viagens, chamou minha atenção um executivo nos arredores do banheiro. Com uma pasta de couro na mão esquerda e uma boneca na mão direita. Deveria esperar a filha de seis ou sete anos. Se sua criança fosse pequena, levaria ao banheiro masculino. Eu experimentei igual crise de paternidade, recordo dos meus momentos com Mariana antes dos quatro anos, queria conduzi-la ao toalete feminino, muito mais limpo, mas a etiqueta não permitia. Ela teve que sobreviver à porqueira do chão e papéis espalhados. Tomara que não guarde trauma.

Absolutamente engravatado, com terno alinhado, o empresário (ou sei lá o que representava) nem ciscava os lados, mirava fixamente a porta, torcendo para que sua menina viesse rápido. O que me intrigou é que ele segurava a boneca displicente, para provar a quem passava que não era dele. Como se alguém fosse sonhar que era dele! Suas orelhas ferviam, brotoejas cercavam sua barba, cabelos brancos procuravam caminhos na raiz.

A boneca o incomodava severamente. Amargava a possibilidade de encontrar algum amigo. Pagava mico em sua imaginação bélica, disparando a contagem regressiva da vergonha, como um bixo do vestibular, como um estagiário em seu primeiro dia no emprego.

Seu constrangimento revelava o absurdo de segurar a boneca de cabeça para baixo, pelas pernas. Fazia ioiô com o bebê de borracha. Um bungee jump dos contos de fadas.

Para avisar que não tinha nada com aquilo. Deixar claro seu distanciamento com a cor rosa e derivados.

Cuidava para não oferecer ternura. Rígido, com pinos no lugar dos ossos. Precisava manter os punhos cerrados, não apertar o vestido, poderia existir um botão capaz de acionar choro, xixi, miado ou cantorias. Boneca moderna é um carro de som.

Longe de qualquer operação afetuosa, mergulhava no transe da continência militar (imagina se solta uma carícia involuntária e acaba denunciando que brincava de boneca quando pequeno?).

Não se sujeitaria a pentear a juba do brinquedo, muito menos ajeitar o leve corpo nos cotovelos. Naquele cruzamento de olhares, um berço de dedos custaria caro. Talvez o cargo, talvez a fama. Porque se desse colo indicaria um pertencimento e forneceria margem para enganos. Não aceitava que fosse confundido. Sua reputação estava em jogo. O que julgava ser sua reputação.

Quando sua filha voltou do banheiro, parou desapontada em sua frente:

— Você está mostrando a calcinha da minha filha para todo mundo, nem parece que é meu pai.

Esconder o vexame sempre foi o maior vexame.



Crônica publicada no site Vida Breve

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