Blog do Carpinejar

DEVOLVA-ME

Arte de Marciano Schmitz

O sotaque da terra natal desarma os ouvidos mais duros, suaviza os corações mais indóceis.

É encontrar um conterrâneo e já voltamos a falar como na infância, apesar de longo tempo distante. Não precisamos nem de cinco minutos de conversa para reaver o tom, o chiado, as expressões, os acentos.

Nada é mais reconfortante do que o contato com a pronúncia de onde nascemos. Ainda mais quando passamos temporadas fora do nosso Estado.

Caio, engenheiro natural de Uruguaiana, há três décadas nos Estados Unidos, foi vítima de um câncer nos ossos. Nenhum tranquilizante era capaz de amenizar as dores e levantá-lo do cansaço ultrajante do fim. Estava se entregando. Indo embora. Fez um pedido extravagante para sua mulher. Um último pedido. Reivindicou para sua esposa americana um mapa do Rio Grande do Sul. Tinha que ser de papel. Mapa rodoviário de estrada.

Como quem procura um medicamento inédito diante da falta de efeitos, ela nem questionou. Aquilo seria fácil para que mora em Porto Alegre, possível de comprar em qualquer tabacaria, mas em Austin, não, não podia ser mais raro.

Ela encomendou com os irmãos de Caio, que moravam em Caxias. Cobriu tudo o que é despesa aérea para agilizar a entrega.

Quando Caio recebeu o mapa, recobrou a cor da pele e desafiou os familiares com uma energia extra.

Era um outro homem repentinamente. Com intimidade de uma camisa antiga passada pela mãe, desdobrou o papel e cheirou a superfície.

As linhas azuis dos rios bem que poderiam ser a cartografia saliente de suas veias.

Pegou os óculos e passou a ler as cidades por ordem alfabética:

“Água Santa, Agudo, Ajuricaba, Alecrim, Alegrete, Alegria, Alpestre, Alto Alegre, Alto Feliz, Alvorada, Amaral Ferrador, Ametista do Sul, André da Rocha, Anta Gorda, Antônio Prado, Arambaré, Araricá, Aratiba, Arroio Grande, Arroio do Meio, Arroio do Sal, Arroio do Tigre, Arroio dos Ratos, Arvorezinha, Augusto Pestana, Áurea, Bagé...”

Começou a rir, tossia e ria, absurdamente feliz. Estava reeducando os ouvidos.

Sua voz falhava e não desistia, insistia tal piá empinando pipa. Os olhos lustrosos e corajosos dando cada vez mais corda ao horizonte, segurando firme cada palavra, não se entregando às puxadas do minuano.

Morreu recitando os 497 municípios, numa viagem particular pelas curvas e estradas de seu timbre.

Quem me contou esta história foi seu filho Daniel. Mas só acredito porque sou gaúcho.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 3/03/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18091

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