FLA-FLU DAS BRASAS
Marcar futebol é uma negociação tremenda.
Se o jogo é domingo, o marmanjo fica o sábado confirmando os nomes. É uma expectativa de menino. Sofre pavor de trabalhar no final de semana, mas não larga o celular para agendar a turma ao campinho. Não achará tempo para mais nada. O finzinho da tarde dominical será dedicado a se recuperar do cansaço e das lesões ou para lembrar os melhores momentos da partida.
Não existe gostar de futebol e desligar o assunto. É fácil entender a fobia das mulheres com o "joguinho". Não se trata de um esporte com hora marcada, é ser envolvido pelos bastidores de uma campanha eleitoral (Ele vai? Não vai? Por quê?). Não é somente um que planeja e efetua a série de telefonemas, todos se falam entre si para reiterar o convite. A crise aumenta se não é salão e sim sete, mais ainda no momento do futebol de campo.
A histeria masculina repousa nas chuteiras. Caso o homem fosse jogar e voltasse assim que terminasse, pronto, estava resolvido; o pomo da discórdia é que inventa de se concentrar como profissional. Ele é amador no trato com a bola e rigoroso na preparação e nos rituais de véspera.
Tão terrível como planejar uma partida entre amigos é desmarcar um churrasco. O equivalente a suspender velório. Mexe com a hombridade do convidado, com sua desvalia, é arrancar aquilo que foi dado de graça. Gera uma discórdia, uma desconfiança pérfida que abala companheirismos antigos e históricos de infância.
O convidado se colocará como um renegado. Tomado de uma feição bovina, pastará insultos nas próximas semanas. A amizade corre sério risco de virar curral. O anfitrião dependerá de cintura ou de um motivo nobre mesmo para contornar a atitude drástica.
Meu amigo Beto planejou uma ovelha em sua chácara. De repente, não sei qual chave de luz desligou na cabeça do rapaz, gente de cavanhaque é imprevisível, mandou um torpedo cancelando:
"Só agora consegui sentar. Estou com pregas. Faremos outro dia."
Li todo Hegel e Ludwig Wittgenstein para esclarecer o termo técnico. Não digeri o significado de 'pregas', deveria ser um jargão, pois veio de um filósofo.
Não houve dicionário que aplacasse o mistério. Raciocinei por minha conta. Vivia o impasse clássico entre o enigma e o óbvio. Cansado, decidi pelo óbvio. Liguei para os casais convidados alegando que ele estava realmente mal, achava que eram hemorróidas. Espalhei a origem com dó e um pouco de piedade, acrescentando que seria até aconselhável ligar para ver se o patrão melhorou e conseguia deitar.
Visualizava Beto capenga, manco das nádegas, sem condição nenhuma de permanecer vigiando a churrasqueira, com dores infindáveis no quadril. Um homem apenas cancela um churrasco se perdeu a dignidade. Um recuo inédito no duelo de espetos. Inadmissível perante a expectativa da turma: a carne havia sido comprada e recusamos ofertas de comer na casa da sogra.
Churrasco é sagrado, é o Fla-Flu das brasas, o jogo intuitivo do macho contra o fogo, um combate às sombras da caverna.
Anular um churrasco é desertar da revolução farroupilha, ter a licença de assador cassada. Pode arrumar suas coisas e morar no exterior. Seu nome aparecerá na lista de procurados em todos os Centros de Tradição Gaúcha.
Na noite de sábado, Beto me telefona gritando:
- Que história essa de hemorróidas?
- Como assim, Beto? Você está com hemorróidas, não?
- Nãooooooo
(Afastei o fone do ouvido)
- Eu entendi errado, o que é, então, pregas?
- Preguiça! Pregas é uma abreviação de preguiça.
- Abreviar preguiça é muito preguiçoso. Quem manda não escrever a palavra inteira.
- Não vem com balela, trate de esclarecer a todo mundo que me ligou oferecendo conselhos para curar minha bunda.
- Tá louco, melhor ficar com hemorróidas. Aceita, foi uma boa ação, não contarei a verdade para ninguém.