LIBERDADE É PODER BRIGAR
Se a minha mulher fizesse tudo o que eu quero, eu seria livre, mas ela não.
Se eu fizesse tudo o que a minha mulher quer, ela seria livre, mas eu não.
Como ambos não realizam o que o outro sempre deseja, vivemos brigando. Ou discutimos por ciúme.
Ou por algum descaso. Ou para manter a vontade de cada um.
E não brigamos por qualquer coisa, isso é neurose, porém brigamos para manter pontos fundamentais das nossas personalidades.
Quem enxerga de fora não alcança o motivo de nossa união, já que parecemos divergentes, explosivos, passionais.
Dá a entender que somos infelizes e gostamos de nos maltratar, mas é um grande equívoco.
Nunca renunciei a minha liberdade. Ela nunca renunciou a sua liberdade. Brigar é a prova de que somos livres dentro do casamento. Nenhum dos dois sacrificou a sua independência para agradar o outro. Nenhum dos dois é submisso. Nenhum dos dois abdicou de suas convicções. Nenhum dos dois se sujeitou a uma placidez consensual.
Estamos convivendo, cedendo o possível e nos entendendo devagar, como deve ser qualquer democracia amorosa, a partir de exaustivas conversas e tentativas.
O respeito vem das brigas superadas, a maturidade vem com o tempo, méritos e medalhas de uma longa depuração das dissidências.
Casal que não se desentende não é mais casal, e sim uma dupla: um grande e um pequeno, um gato e um rato, um dominador e um submisso, um tirano e um explorado.
Significa que um dos dois se apagou completamente e diz amém para toda reivindicação que surge.
As rusgas, os atritos e as confusões familiares, desde que episódicas, são absolutamente naturais para quem ama. Não é nenhum vexame ou mico. Não é uma exceção. Não é um dia ruim.
Dependem de terapia de casal aqueles que se calam para não ter trabalho, não os briguentos, não os ruidosos, não os exagerados, que encontram um jeito de imprimir o seu posicionamento.
Liberdade não é concordância, liberdade é ter a chance sempre de discordar, de escolher, de se opor, mesmo que seja errado ou inadequado.
Quando vejo um par que se expressa, que se pronuncia com firmeza, que troca farpas, acentuados de algazarra, saio de perto, e não por vergonha, é que não me preocupo, sei que estão bem e juntos, sei que estão protagonizando mais um capítulo de aguda sinceridade.
Já quando reparo em um par obediente, calado, já pressinto que me aproximei de um cativeiro em vez de um lar. Alguém fez um refém e não pediu resgate, alguém explora a bondade alheia e escraviza.
Liberdade numa união é poder defender a própria liberdade.
Já prisão é não oferecer resistência, é desistir de falar, é não comentar nada para não desapontar, é não explicar seus pensamentos contrários.
Idealizamos o casamento como se fôssemos solteiros, e não convivendo com uma pessoa absolutamente diferente, com uma vocação diferente, com um sonho diferente.
Igualar-se mata a relação. O que salva o amor é jamais suprimir a identidade em nome do mais forte.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 18/10/2015 Edição N°18328