Blog do Carpinejar

MÃO GRANDE

Arte de Paul Cézanne

Não tenho definido quando passei a usar desodorante. E meus pais viram que suava e fedia. Qual foi a marca? Não tenho certeza de quando usei a primeira vez a gilete no rosto, após surgir o bigode falhado que não era de vitamina. 11, 12 anos? Não conservo a convicção de tempo quando troquei sabonetes e loções infantis pelo xampu e o box virou uma farmácia. Ou quando comprei minhas roupas e não encontrava mais espaço nas prateleiras. Ou quando surgiram os pêlos pubianos e me envergonhei de cuidados. Ou quando comecei a trancar a porta do banheiro, do quarto, da frente. Ou quando me interessei por uma menina.

Não anotei metade dos acontecimentos da minha transição, não contei com álbum de fotografias e legendas que servissem de corrimão para a memória. Nunca confiei que teria uma biografia, já era complicado ter uma vida.

Entrei na fase adulta com a paternidade. Foi quando deixei de gritar. Italiano, gringo, passional, acostumado a chamar as pessoas da residência pelo berro, não importando a distância, conheci o sussurro. A conversa sussurrada. Algo inédito para meu biotipo agressivo. De modo nenhum, na adolescência, falava baixo para não acordar os irmãos, desejava mesmo é chamar atenção e levantar a família. Não gostava de tomar café da manhã sozinho.

Ao nascer a Mariana e Vicente, realmente me aquietei. Eu me despedi do desespero. A sensação é que a altura da voz é agora a do sangue. Não imponho o timbre, não ergo as vogais, descobri o quanto o sono deles é sagrado. Antes derrubava xícaras, batia o armário, pisava fundo. Agora sei furtar minha casa com competência. Roubo pertences de um aposento a outro com enorme talento. Pego as roupas sem estardalhaço, prendendo a respiração. Acredito que flutuo pelo chão, meu par sujo de meias são minhas asas. Escovo os dentes economizando o chapinhar da torneira, sento-me na sala com a escolta silenciosa da luz. Permaneço horas a fio com o ouvido de pé, como se controlasse todos os ruídos do telhado. O assoalho somente passa a existir depois dos filhos.

Maturidade é assistir com gosto um filme mudo, não pensar mais que o silêncio é um defeito. Se minha mulher desperta, nossa risada é feita de sopros e assobios, não é tão diferente do canto dos sabiás nos fios telefônicos. Somos pássaros ciscando as chamadas e os interurbanos. Não deixamos de fazer nada, mas sempre com imponderável discrição. Mexemos nas panelas e montamos o almoço pousando os pratos na mesa. Não há atrito entre os garfos. Não há um rasgo de metal no dia. As crianças acordam pelo cheiro da comida.

Despertamos os filhos no final de semana pelo olfato. É o nosso único barulho.



Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 135, Número 204
Novembro de 2010

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