Blog do Carpinejar

NÉCESSAIRE

Arte de Robert Motherwell


Coitada da minha filha. Talvez a mais perigosa manifestação de ciúme seja a do pai diante de sua menina. Porque não é um ciúme óbvio, amoroso, reversível, de casal, que ficamos envergonhados no momento em que sentimos; podemos brigar, quebrar pratos e exorcizar as fraquezas.

É dissimulado, autoritário, inconsciente, orgulhoso e certo de que não é ciúme, mas cuidado. E o outro lado não será a esposa ou a namorada capaz de se defender, e sim uma criança insegura e dependente de suas palavras. Não existirá igualdade no contraponto, honestidade no duelo.

Trata-se de um massacre intelectual com enormes prejuízos para a estima. A criança achará que faz tudo errado, que não tem discernimento, que é prematura e propensa a errar, insuficiente para conduzir a própria vida.

O ciúme paterno é uma violência, feito de chantagens e ordens. Vem disfarçado da imunidade do amor, o que confunde os papéis e piora o entendimento.

Todo agrado de um menino na escola e o pai já vê que a filha será explorada. Toda saída com as amigas e o pai já alucina que será induzida a drogas. E sofrerá com acampamentos, excursões, festas, antevendo tragédias e repassando mandamentos para que ela se proteja.

A dificuldade é que ele não assume sua neurose, transmite a ideia de que a filha não obedece e está facilitando. Põe a culpa nela, por não seguir a loucura das regras. Castiga, tolhe e censura suas atividades e pensamentos. Só permaneceria calmo se ela não saísse do quarto. Ou do ventre da mãe.

Não permite que ela tropece ou se engane, não admite que ela experimente e diga o que gosta. Em vez de orientar, proíbe, com a desculpa de que sabe o que fala e que tem experiência. Ou simplesmente por se considerar acima de suspeita e de que não pode ser questionado.

Isso não é paternidade, é possessividade, doença. É não tolerar que a filha ame o mundo mais do que o sobrenome. Quando pai banca Deus acaba virando o diabo.

Eu percebi o quanto fui sinistro com a Mariana e ainda me envaidecia.

Meu primeiro ataque aconteceu na cozinha, quando Mariana, aos cinco anos, desenhou a família.

Desenhou a mãe, eu, o hamster e... um colega.

- Quem é esse, Mariana?
- É o Pedro...
- Pedro? Da onde?
- Da escola, é lindo, né?
- Ele não é de nossa família!

Ela desabou em choro e soluçava.

- É meu namorado, é meu namorado.

Eu, grosseiramente, peguei a borracha e apaguei a figura. Não falamos mais no assunto até que busquei a filhota na escola e fui limpar sua bolsinha. Estranhei a presença intrusa de uma escova de dente ao lado da escova dela. Havia durex com um nome: Pedro!

Para quê? Briguei com a diretora, gritava avermelhado, enlouquecido, babando. Argumentei de que duas escovas juntos era casamento, de que deveriam fiscalizar melhor os alunos e não misturar os pertences.

Coitado de mim. Minha filha não merecia tanta covardia.



Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 132, Número 203
Outubro de 2010

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