Blog do Carpinejar

O INCÊNDIO



Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi

Minha mãe viveu a infância num hotel, onde a cozinha recebia uma avalanche de estrangeiros que passavam por Guaporé (RS) na metade do século passado. Seu pai era italiano, com estada na Argentina e no Uruguai. Ou seja, falava uma mistura de esperanto e portunhol.

A menina só podia ser babélica convivendo com o entra-sai dos hóspedes. O português servia mais para atender às gírias e ofensas.

Sua primeira redação causou estranheza na sala de aula, no Colégio Scalabrini. Ela deve ter escrito em quatro idiomas e alguns outros desconhecidos, ao apanhar as palavras pelo som e não se fixar na grafia.

Baixou o espírito santo do hotel dos Carpi em sua letra mirrada. Criou uma história sobre um incêndio no campo, em que os bois mugiam e as ovelhas baliam e ninguém entendia o pedido de socorro. Mostrava a incomunicabilidade entre os homens e os animais. Desde cedo, preconizava um talento poético para os ruídos do mundo.

Severa e metódica, a professora não acolheu bem a profusão de idiomas, não compreendeu como uma experiência joyceana de linguagem, considerou o texto apenas uma prova de dislexia.

Anotou todos os erros de cima a baixo de caneta vermelha. A lauda a lápis foi tomada de garatujas e xis. Dava pena de conferir, não sobrou espaço entre as linhas tamanha a intervenção. A felicidade involuntária da infância estava sendo assassinada pela alfabetização.

Quando foi receber o trabalho, Mariazinha olhou de cima a baixo as correções, desprezou a insuficiência gritante e apenas comentou, satisfeita, para a professora:

- Você compreendeu o meu texto!

A professora arregalou os olhos:

- Como? Não viu que a tarefa ganhou um zero?

- A senhora contribuiu pintando com a caneta vermelha e estendendo as chamas.

Coluna Semanal Vida Breve
Publicado em 15.06.2016

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