O INCÊNDIO
Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi
A menina só podia ser babélica convivendo com o entra-sai dos hóspedes. O português servia mais para atender às gírias e ofensas.
Sua primeira redação causou estranheza na sala de aula, no Colégio Scalabrini. Ela deve ter escrito em quatro idiomas e alguns outros desconhecidos, ao apanhar as palavras pelo som e não se fixar na grafia.
Baixou o espírito santo do hotel dos Carpi em sua letra mirrada. Criou uma história sobre um incêndio no campo, em que os bois mugiam e as ovelhas baliam e ninguém entendia o pedido de socorro. Mostrava a incomunicabilidade entre os homens e os animais. Desde cedo, preconizava um talento poético para os ruídos do mundo.
Severa e metódica, a professora não acolheu bem a profusão de idiomas, não compreendeu como uma experiência joyceana de linguagem, considerou o texto apenas uma prova de dislexia.
Anotou todos os erros de cima a baixo de caneta vermelha. A lauda a lápis foi tomada de garatujas e xis. Dava pena de conferir, não sobrou espaço entre as linhas tamanha a intervenção. A felicidade involuntária da infância estava sendo assassinada pela alfabetização.
Quando foi receber o trabalho, Mariazinha olhou de cima a baixo as correções, desprezou a insuficiência gritante e apenas comentou, satisfeita, para a professora:
- Você compreendeu o meu texto!
A professora arregalou os olhos:
- Como? Não viu que a tarefa ganhou um zero?
- A senhora contribuiu pintando com a caneta vermelha e estendendo as chamas.
Coluna Semanal Vida Breve
Publicado em 15.06.2016