O QUÊ?
A velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo.A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao
zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.
E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.
Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.
Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças.
O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.
As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.
O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a
recorrência faz com que perca a credibilidade.
Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.
A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.
Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
27.11.2016
Coluna Semanal