POESIA A CÉU ABERTO
Arte de Giacometti
A poesia está nos quadrinhos, na Bíblia, no rock, na bula do remédio, na etiqueta do sutiã. Não há como viver sem poesia. Ficamos incomunicáveis. Ela é um atalho da linguagem. Uma simplicidade comunicativa. Foi estigmatizada de difícil, de complicada, de inacessível, mas é o contrário: facilita o entendimento.
No futebol, o narrador morreria descrevendo um jogo. Ai, eu disse "morreria", desculpa, foi um exagero poético. É uma figura para dizer que ela se cansaria. A poesia exagera ou diminui, para chegar perto da adrenalina do momento. Morreria é uma sensação de ultrapassar os limites. Não é morrer de verdade, morrer literal.
Quando digo que minha mulher me levou aos céus depois de um beijo, eu não fui ao céu e voltei. É a impressão de vertigem do amor. No instante em que Pablo Neruda, poeta chileno Nobel de Literatura, coloca que o cheiro da barbearia lhe faz chorar aos gritos não é para levar a sentença ao pé da letra: ele confessa seu medo da navalha e da tesoura.
Antes as palavras eram somente palavras. O poema veio para colocar o sentimento dentro delas.
O locutor de futebol, na verdade, foi salvo pelas metáforas, senão a partida duraria 360 minutos. Metáfora é falar algo por uma comparação. Quando o radialista comenta que Neymar deu um lençol no Chicão, ele evitou de explicar que o atacante santista lançou a bola por cima da cabeça do zagueiro corintiano e buscou do outro lado. Com uma imagem, resolveu a questão, ganhou valiosos minutos no rádio. A jogada é igual ao desenho de um lençol.
Há um glossário futebolístico imenso que segue essa linha como janelinha, balãozinho, pedalada, bicicleta, elástico, folha seca, embaixadinha, trivela. A poesia é o apelido do mundo. Uma nova forma de nomear e inaugurar as coisas. Pode ser engraçado, pode ser sério. O apelido é um jeito de qualificar semelhanças. Para o bem. E para o mal. Quem pratica apelido, pratica poesia.
Nem o bullying escapa dos versos. Se alguém tem sardas pode ser chamado de Sarampo, isso acontece pela parecença com os sintomas da doença. Nem a sedução dispensa os versos. Mas quem tem sardas pode receber apelidos lindos, como Iluminado. Explico, sardas são como óculos na pele, parece que geram luz e fazem brilhar a coloração dos poros.
A poesia aproxima palavras que não se cumprimentavam. Palavras ranzinzas, que nunca conversavam no dicionário. Quanto mais diferentes, mais a união produz barulho e o efeito desejado de surpreender. Ela gosta mesmo de casar. Perfeito, a poesia é uma agência de casamento entre os vocábulos.
De um lado, o fogo. De outro, a tempestade. Os dois representam forças opostas. Poesia ama novidades, esquisitices, exuberâncias.
Vamos casar o fogo com a chuva? Temos que encontrar um ponto em comum. Que tal a rapidez? Fogo destrói casas com velocidade. Tempestade destrói casas com velocidade.
Feito o poema:
A tempestade é tão rápida quanto o fogo.
Certo?
As peças podem ser antagônicas, o importante é definir uma convergência, uma intersecção.
O que a ovelha tem de igual com a água?
A lã e a espuma são brancas e repousam na superfície.
Desse jeito, permito-me definir que
A lã é a espuma do rebanho.
É uma brincadeira que combina mais com o nosso raciocínio emocional, repleto de desejos, arrebatamentos, vontades.
No futebol, o narrador morreria descrevendo um jogo. Ai, eu disse "morreria", desculpa, foi um exagero poético. É uma figura para dizer que ela se cansaria. A poesia exagera ou diminui, para chegar perto da adrenalina do momento. Morreria é uma sensação de ultrapassar os limites. Não é morrer de verdade, morrer literal.
Quando digo que minha mulher me levou aos céus depois de um beijo, eu não fui ao céu e voltei. É a impressão de vertigem do amor. No instante em que Pablo Neruda, poeta chileno Nobel de Literatura, coloca que o cheiro da barbearia lhe faz chorar aos gritos não é para levar a sentença ao pé da letra: ele confessa seu medo da navalha e da tesoura.
Antes as palavras eram somente palavras. O poema veio para colocar o sentimento dentro delas.
O locutor de futebol, na verdade, foi salvo pelas metáforas, senão a partida duraria 360 minutos. Metáfora é falar algo por uma comparação. Quando o radialista comenta que Neymar deu um lençol no Chicão, ele evitou de explicar que o atacante santista lançou a bola por cima da cabeça do zagueiro corintiano e buscou do outro lado. Com uma imagem, resolveu a questão, ganhou valiosos minutos no rádio. A jogada é igual ao desenho de um lençol.
Há um glossário futebolístico imenso que segue essa linha como janelinha, balãozinho, pedalada, bicicleta, elástico, folha seca, embaixadinha, trivela. A poesia é o apelido do mundo. Uma nova forma de nomear e inaugurar as coisas. Pode ser engraçado, pode ser sério. O apelido é um jeito de qualificar semelhanças. Para o bem. E para o mal. Quem pratica apelido, pratica poesia.
Nem o bullying escapa dos versos. Se alguém tem sardas pode ser chamado de Sarampo, isso acontece pela parecença com os sintomas da doença. Nem a sedução dispensa os versos. Mas quem tem sardas pode receber apelidos lindos, como Iluminado. Explico, sardas são como óculos na pele, parece que geram luz e fazem brilhar a coloração dos poros.
A poesia aproxima palavras que não se cumprimentavam. Palavras ranzinzas, que nunca conversavam no dicionário. Quanto mais diferentes, mais a união produz barulho e o efeito desejado de surpreender. Ela gosta mesmo de casar. Perfeito, a poesia é uma agência de casamento entre os vocábulos.
De um lado, o fogo. De outro, a tempestade. Os dois representam forças opostas. Poesia ama novidades, esquisitices, exuberâncias.
Vamos casar o fogo com a chuva? Temos que encontrar um ponto em comum. Que tal a rapidez? Fogo destrói casas com velocidade. Tempestade destrói casas com velocidade.
Feito o poema:
A tempestade é tão rápida quanto o fogo.
Certo?
As peças podem ser antagônicas, o importante é definir uma convergência, uma intersecção.
O que a ovelha tem de igual com a água?
A lã e a espuma são brancas e repousam na superfície.
Desse jeito, permito-me definir que
A lã é a espuma do rebanho.
É uma brincadeira que combina mais com o nosso raciocínio emocional, repleto de desejos, arrebatamentos, vontades.
O ensaísta Nelson Rodrigues enfrentou a pobreza na infância, não tinha almoço e nem janta e enganava o estômago tomando água. Usou a poesia para que o leitor percebesse a gravidade da situação.
― Eu não bebia água, comia a água.
Pois a água era sua refeição. Ele traficou sentidos entre os verbos. Assim como quem já teve infecção na garganta, tem todas as condições para compreender a água como um alimento. Demora a descer, a ponto de necessitar de dentes para ingeri-la.
A poesia fotografa a emoção. É um detector de emoção das frases. Ela recombina palavras, tornando a leitura nervosa. O escritor Paulo Henriques Brito poderia ter escrito em um de seus poemas:
Noite cheia de estrelas.
Mas inventou de digitar:
Noite encaroçada de estrelas.
O adjetivo mudou a feição do verso, apesar de expressar idêntica mensagem. O primeiro verso é um lugar-comum, aquilo que a maioria está cansada de repetir em cartões românticos. Já o segundo, tem um encantamento preciso, sutil. Encaroçada lembra algo penoso, um desafio a superar, uma dor perigosa. Partilha vizinhança com o diagnóstico do câncer (caroço).
Descobrimos que é uma noite particular de sofrimento, não uma noite de prazer e alegria. O caroço também traz a ideia de nascer de novo, de germinar. Uma palavra ― e só uma palavra encaixada com sabedoria ― possibilitou uma gama infinita de interpretações. Quanto mais sugestões o poema produz, mais rico ele é.
A poesia é fábula, pacto mágico com o interlocutor. Toda ação estranha é normalizada. Toda normalidade é estranhada. Se Carlos Drummond de Andrade expõe que
Do lado esquerdo carrego meus mortos.
Tal atitude – ainda que improvável, ainda que não enxerguemos os mortos - tem um resultado:
Por isso, caminho um pouco de banda.
O esquisito resulta em dano prático e razoável. Ele anda torto porque carrega seus fantasmas.
A poesia troca as funções do que é conhecido e comum. Muda as idéias de lugar para chamar atenção. É um jogo gigante dos sete erros com letras.
― Ai, dor de pólvora em meus olhos ― exclama o poeta espanhol Federico Garcia Lorca.
Além de inserir pólvora nos olhos, substitui o fogo por dor.
Dor (fogo) + pólvora (explosão) + olhos
Ocorre a mistura de três elementos até então vedados, separados. O mais impressionante é que a cena remete a uma experiência; antigamente, na hora de atirar com uma espingarda, o rastilho de pólvora ardia os olhos.
Animais e coisas são humanizados, e homens são coisificados e animalizados. Para impor uma percepção diferente daquilo que é vivido. Mulheres voam, cavalos batem palmas, peixes correm, cachorros gritam.
O que leva a Manoel de Barros a formular cenas pitorescas. Para apontar que passou muito tempo, ele versifica:
Na outra margem do rio,
as águas já tinham até criado cabelo.
Cabelo que é do homem agora é da água. E faz todo sentido visual: o que é o cabelo do rio senão raízes trançadas das árvores em volta.
Um dos pontos altos da poesia é modificar o senso comum, questionar as aparências. Seu motor de diálogo é a curiosidade infantil, insaciável. O poeta português Gonçalo Tavares estabeleceu uma inversão importante: pagamos a conta da luz todo o mês, mas se pagássemos a conta do escuro, qual seria a maior? Ao apagar a luz, estaríamos acendendo o escuro. Ao acender a luz, estaríamos apagando o escuro. Alguém já pensou sob essa perspectiva ingênua e ― incrível ― pertinente?
A luz representaria nossa alegria, nossa esperança, nossa saúde. O escuro é a nossa tristeza, nossas dores, nossas doenças. Qual usamos mais? A partir de um ponto de vista inédito, propõe a raciocinar como cuidamos de nossa vida. Somos leves ou pesados, otimistas ou pessimistas, confiantes ou desmotivados?
O poema é como uma escada, cada pergunta é um degrau.
Vou entrar numa igreja. Veja a pia com a água benta. Faço o sinal da cruz. O que seria automático não é mais porque eu pergunto.
- Água está parada? -
- De onde vem ela? -
- É potável ou suja? -
Os questionamentos formam a escadinha para atingir o verso, que é o telhado. Então, finalizo:
Será que Deus é potável?
O leitor não terá a minha escada, lerá somente o verso "Será que Deus é potável?", no qual troquei a água benta por Deus. Eu tiro a escada no livro, para que ninguém descubra como subi no telhado e permitindo que cada um crie suas próprias perguntas. Por isso qualquer verso é cercado de vazios e silêncios. São perguntas que desapareceram.
― Eu não bebia água, comia a água.
Pois a água era sua refeição. Ele traficou sentidos entre os verbos. Assim como quem já teve infecção na garganta, tem todas as condições para compreender a água como um alimento. Demora a descer, a ponto de necessitar de dentes para ingeri-la.
A poesia fotografa a emoção. É um detector de emoção das frases. Ela recombina palavras, tornando a leitura nervosa. O escritor Paulo Henriques Brito poderia ter escrito em um de seus poemas:
Noite cheia de estrelas.
Mas inventou de digitar:
Noite encaroçada de estrelas.
O adjetivo mudou a feição do verso, apesar de expressar idêntica mensagem. O primeiro verso é um lugar-comum, aquilo que a maioria está cansada de repetir em cartões românticos. Já o segundo, tem um encantamento preciso, sutil. Encaroçada lembra algo penoso, um desafio a superar, uma dor perigosa. Partilha vizinhança com o diagnóstico do câncer (caroço).
Descobrimos que é uma noite particular de sofrimento, não uma noite de prazer e alegria. O caroço também traz a ideia de nascer de novo, de germinar. Uma palavra ― e só uma palavra encaixada com sabedoria ― possibilitou uma gama infinita de interpretações. Quanto mais sugestões o poema produz, mais rico ele é.
A poesia é fábula, pacto mágico com o interlocutor. Toda ação estranha é normalizada. Toda normalidade é estranhada. Se Carlos Drummond de Andrade expõe que
Do lado esquerdo carrego meus mortos.
Tal atitude – ainda que improvável, ainda que não enxerguemos os mortos - tem um resultado:
Por isso, caminho um pouco de banda.
O esquisito resulta em dano prático e razoável. Ele anda torto porque carrega seus fantasmas.
A poesia troca as funções do que é conhecido e comum. Muda as idéias de lugar para chamar atenção. É um jogo gigante dos sete erros com letras.
― Ai, dor de pólvora em meus olhos ― exclama o poeta espanhol Federico Garcia Lorca.
Além de inserir pólvora nos olhos, substitui o fogo por dor.
Dor (fogo) + pólvora (explosão) + olhos
Ocorre a mistura de três elementos até então vedados, separados. O mais impressionante é que a cena remete a uma experiência; antigamente, na hora de atirar com uma espingarda, o rastilho de pólvora ardia os olhos.
Animais e coisas são humanizados, e homens são coisificados e animalizados. Para impor uma percepção diferente daquilo que é vivido. Mulheres voam, cavalos batem palmas, peixes correm, cachorros gritam.
O que leva a Manoel de Barros a formular cenas pitorescas. Para apontar que passou muito tempo, ele versifica:
Na outra margem do rio,
as águas já tinham até criado cabelo.
Cabelo que é do homem agora é da água. E faz todo sentido visual: o que é o cabelo do rio senão raízes trançadas das árvores em volta.
Um dos pontos altos da poesia é modificar o senso comum, questionar as aparências. Seu motor de diálogo é a curiosidade infantil, insaciável. O poeta português Gonçalo Tavares estabeleceu uma inversão importante: pagamos a conta da luz todo o mês, mas se pagássemos a conta do escuro, qual seria a maior? Ao apagar a luz, estaríamos acendendo o escuro. Ao acender a luz, estaríamos apagando o escuro. Alguém já pensou sob essa perspectiva ingênua e ― incrível ― pertinente?
A luz representaria nossa alegria, nossa esperança, nossa saúde. O escuro é a nossa tristeza, nossas dores, nossas doenças. Qual usamos mais? A partir de um ponto de vista inédito, propõe a raciocinar como cuidamos de nossa vida. Somos leves ou pesados, otimistas ou pessimistas, confiantes ou desmotivados?
O poema é como uma escada, cada pergunta é um degrau.
Vou entrar numa igreja. Veja a pia com a água benta. Faço o sinal da cruz. O que seria automático não é mais porque eu pergunto.
- Água está parada? -
- De onde vem ela? -
- É potável ou suja? -
Os questionamentos formam a escadinha para atingir o verso, que é o telhado. Então, finalizo:
Será que Deus é potável?
O leitor não terá a minha escada, lerá somente o verso "Será que Deus é potável?", no qual troquei a água benta por Deus. Eu tiro a escada no livro, para que ninguém descubra como subi no telhado e permitindo que cada um crie suas próprias perguntas. Por isso qualquer verso é cercado de vazios e silêncios. São perguntas que desapareceram.
Porém, não caía na tentação de confundir poesia com doideira. Ela tem método, dinâmica, uma estrutura definida. Traz uma história visível e outra invisível. Como num conto, privilegia a surpresa no desfecho, o choque, o "eu não imaginava" que nos incita a releitura para observar melhor o caminho.
O poema contraria as expectativas. Sempre. Adélia Prado confessa:
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Você supõe que ela vai apoiar a repulsa caseira de desventrar o cardume. Veja como continua:
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Entendeu? O que é ruim é maravilhoso, o que é agradável é nocivo. A poeta nada na contramão do clichê e estabelece uma definição diversa da rotina e dos hábitos.
A história visível é: horrível limpar peixes e acompanhar a volta do marido da pescaria. A história invisível, que somente aparece depois, é: amo dividir a madrugada com o marido mesmo que seja limpando o peixe.
Aquele que é do contra está a favor do poema. E nem sabia.
O poema contraria as expectativas. Sempre. Adélia Prado confessa:
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Você supõe que ela vai apoiar a repulsa caseira de desventrar o cardume. Veja como continua:
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Entendeu? O que é ruim é maravilhoso, o que é agradável é nocivo. A poeta nada na contramão do clichê e estabelece uma definição diversa da rotina e dos hábitos.
A história visível é: horrível limpar peixes e acompanhar a volta do marido da pescaria. A história invisível, que somente aparece depois, é: amo dividir a madrugada com o marido mesmo que seja limpando o peixe.
Aquele que é do contra está a favor do poema. E nem sabia.
Publicado na revista Vida Simples
São Paulo, Junho 2012 / Edição 120 Ps. 40-45