QUANDO MORDI A MINHA LÍNGUA
O que sentimos ou deixamos de sentir está impresso nos mínimos gestos.
Você pode ser uma pedra, não falar nada, mas até a pedra um dia será amaciada pelo musgo.
Não adianta sonegar emoções, traficar amores, camuflar problemas, porque será descoberto. Entregará o que vem lhe preocupando pela aparência. Somos horóscopos ambulantes, biscoitos da sorte prestes a serem quebrados por uma mensagem.
No fim do Ensino Médio, eu vivia brigando com os meus colegas, desafiando os professores, respondendo desaforado aos pais. Óbvio que fui forçado a visitar a psicóloga da escola. Prometi a mim mesmo que lacraria a boca, ficaria calado durante a consulta inteira, faria terrorismo com a quietude. Não achava justo ser obrigado a me analisar e ainda mais numa época em que a terapia estava vinculada preconceituosamente à loucura.
Eu me ajeitei na poltrona com o meu estojo e caderno de aula debaixo do braço e a indisposição macabra de silenciar a cada pergunta. Mas a psicanalista não questionou nada, e o seu silêncio inesperado foi me enervando. Ela me observava com interesse, e eu querendo cada vez mais me esconder. Quando alguém permanece quieto muito tempo em nossa frente é como encarar um espelho e o tamanho de nossas dúvidas. Ela me provocava não me provocando, ela me emparedava abrindo todas as portas. Aquela liberdade assustadora de não ser cobrado a participar me aprisionava.
Mexi em meu estojo para me distrair.
Ela perguntou se eu poderia emprestar uma caneta.
Alcancei uma Bic azul. Ela viu que a tampa estava mordida. Olhou com carinho e comentou:
– Enquanto não morder o tubo, está tudo bem.
Eu ri de nervoso e demonstrei curiosidade.
– Morder a tampa significa alguma coisa?
– Significa que não fecha as conversas, que foge das discussões com medo de dizer a verdade, que reprime o desejo e vira as costas remoendo sozinho as suas frustrações e decepções, jamais repartindo a sua verdadeira opinião com ninguém, nem com seus melhores amigos.
Não revelei coisa alguma durante uma hora do encontro, mas ela me decifrou inteiramente apenas analisando a tampinha mordida da caneta. Uma mera, idiota e banal tampinha iluminou o meu comportamento.
A partir daquele dia, nunca mais subestimei a psicanálise e cuidei para morder somente a insossa borracha nos momentos de maior ansiedade.
Publicado em Zero Hora - Caderno Donna
14.08.2016
Coluna Semanal