Blog do Carpinejar

QUEBRA-CABEÇA DE CINCO MIL PEÇAS

Arte de Richard Hamilton


Troco os objetos de lugar para que minha mulher fale comigo.

Funciona perfeitamente. Ela que demora a colocar a alma no corpo de manhã acaba conversando mais do que esperava.

– Onde está meu cinto?

– Viu meu celular?

– Cadê meus óculos de sol?

Vou respondendo como um quiz show, um sábio dos esconderijos:

– Na segunda gaveta.

– Está carregando na sala.

– No porta-luvas do carro.

Forjo importâncias. Com o pretexto de salvá-la dos atrasos do trabalho. Ela acorda às 8h30min, tem meia hora para se arrumar e outros 30 minutos para chegar à clínica.

É evidente que ela não perderia tempo se eu deixasse sua bagunça em ordem, acharia mais rápido as urgências, mas crio uma falsa eternidade, uma falsa ordem, para dar a sensação que cuido dela e ainda me preocupo com a limpeza.

O marido mais torturador é o metido a faxineiro. Não vem com o caminhão de mudança, é o caminhão de mudança. Aquele que entra em sua casa como namorado e, na primeira semana, promove uma limpeza geral, com o objetivo de recuperá-la dos vícios. Trata-se de um escorpiano ou um dominador. Ou os dois. A disposição é tanta que passa a temer sua intenção de preparar a salada de maionese do churrasco.

O tipo não se contenta em exercitar seu transtorno obsessivo-compulsivo, pretende emprestá-lo. É um TOC solidário.

Você conclui que foi uma ideia estúpida alcançar uma cópia da chave. A chave é a verdadeira escova de dente que inicia o casamento. Toda a fechadura é um copo que transborda.

Mal entra na sala, enxerga o piso brilhando, encerado, e bate o pavor: as pilhas de papéis importantes estão guardadas não se sabe onde, quer cortar a unha e a tesourinha desapareceu da mira, o prontuário de receitas repousa em uma caixinha anônima na lavanderia. Afora as toalhas, as calças, os vestidos.

E nem pode reclamar, nem pode xingar. Porque os piores atos são feitos para o bem. E isso é um costume do amor.

O arranjo das flores no centro da mesa pede sexo de agradecimento. E ficará chato dizer: “Não toque mais nas minhas coisas”. Engolirá a raiva e permanecerá entontecida em seus próprios domínios, tentando completar diariamente o quebra-cabeça de cinco mil peças.

Uma mulher odeia que a gente mexa em sua bolsa, mas não fez nenhuma restrição em alterar o trajeto dos seus pertences fora do ferrolho. Não colocou nas resoluções do condomínio.

Coitada de Cínthya. Tirou a chave da bolsa, já é minha. Tirou o pente, já é meu. Tirou o filtro solar, já ponho no armário do banheiro.

E ela pensará em mim várias vezes durante o expediente.

– Onde que ele colocou, onde ele colocou, onde ele colocou... minha vida?

E não devolvo.




Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 03/01/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16569

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