Blog do Carpinejar

SENTIMENTAL


Arte de Cy Twombly

Guardo ressalvas ortodoxas. Nunca botarei cinto e sapatos brancos. Nem colarei adesivo de Betty Boop na traseira de meu carro.

Antecipo meus preconceitos. Mulher palitando os dentes teria que usar burka.

Já me sinto aliviado ao confessar. Meu temperamento era mais complicado. Eu me vejo avançando, atingindo uma flexibilidade nos costumes que não percebo nas articulações dos braços.

Até acredito que poderíamos relaxar mais. Iniciando pela casa.

Toda residência solicita uma detalhe de espelunca. Um objeto inexplicável em cima do armário. Uma mandala que não combina com os bibelôs franceses. Um pôster do Michael Jackson junto às telas de tinta a óleo. Um brinquedo de kinder ovo ao lado da cristaleira. Extraviei a vocação conciliatória. Carrinhos de madeira com emblema do Inter dividem a renda da mesa com bonecos mexicanos. Conservo miudezas e trastes que nunca serão disputados num inventário.

Existe algo mais brega do que pregar espelho na porta para afugentar maus espíritos? Pois é o que faço. Funciona melhor do que um olho mágico. Muitos desistem de apertar a campainha.

Encontro harmonia no cemitério, encontro vazios no museu, casa é um espaço altamente contraditório. Não colocarei as incoerências nas gavetas. A vida é curta demais para ter sentido.

O bom de ser pobre é que tudo tem um lugar, mesmo na carência de espaço. Os presentes vão aterrissando, qualquer que seja sua origem, e têm um encaixe imediato nas estantes. Nenhum penduricalho é jogado fora, não importa se é estranho, esquisito, esdrúxulo, o que vigora é o valor emocional. Há um cuidado em preservar o gesto acima da utilidade ou do preço do produto.

O desastre de ser rico é que nada tem um lugar, mesmo com a sobra de espaço. Qualquer utensílio reivindica um estudo do decorador ou do arquiteto. Os casais mergulham numa discussão filosófica sobre a pertinência de uma escultura. Tanto que o rico somente compra terreno na praia para desovar todos os presentes preteridos em seu lar.

O amor deve prevalecer sobre a decoração. Não é saudável estar tudo certo, tudo adequado, tudo arrumado, tudo combinando. Réplicas da Indonésia merecem a companhia engraçada e saudável de um pinguim feito pela filha. Eu sei o significado daquilo, mais ninguém.

Relaxei com a neurose da ordem. Quando solteiro, sonhava com salas limpas, ventiladas, com cada objeto ecoando o estilo dos demais. Não suportava a intrusão de novidades. Não tolerava penetras de plástico, que não tinham no mínimo a idade de meu pai. Lojas de 1,99 causavam pânico.

Com o nascimento de minhas crianças, os limites desapareceram. A sala virou um chiqueiro, com telas de proteção e portinholas nas escadas. Brinquedos apareciam no sofá, chocalhos estrilavam entre os livros, bicos germinavam debaixo das mesas. Eu me abri para as delicadezas cafonas.

Ao receber um ursinho da namorada, não incinerei a pelúcia no primeiro churrasco. Não sofri vergonha dos amigos. Não me abalei se sacrificava a macheza da tenda árabe da cama. Nomeei o animal como guardião dos porta-retratos do quarto.

Estou numa fase sentimental. Acendo lembranças nos corredores, cada janela é um santuário. Nenhuma neutralidade me seduz. Desisto de ser chique enquanto a ideia permanecer como sinônimo de falta de personalidade.

Fale comigo

Contrate
agora uma 
palestra

Preencha o formulário para receber um orçamento
personalizado para a sua empresa ou evento.

Termos de uso e politica de privacidade