Blog do Carpinejar

VARREDORES

Arte de Cínthya Verri

Desço a rua Lageado, em Porto Alegre, as árvores ainda montam sua feira de frutas, a luz vem filtrada pelos galhos, o cheiro é de grama voada, a igreja São Sebastião é meu ponto visual para chegar à Protásio Alves, quase tudo igual a minha infância, menos as pessoas guardadas.

Há um recolhimento de madrugada em pleno sol. Não há mais ninguém varrendo a rua de manhã. A casa somente ficava limpa se a rua era varrida. A rua representava parte da residência. Uma extensão do pátio. Um corredor ansioso ao mundo. Antes das grades e das cercas eletrônicas, do pavor do assalto, a frente funcionava como sala de visitas. Recebia-se namorada nos cantos, o vendedor de enciclopédias e as representantes da Avon no jardim, os mendigos familiares e as campanhas de agasalho na escada. Os únicos riscos que apareciam no chão vinham do jogo da amarelinha e dos carrinhos de rolimã.

Não adiantava nada arrumar os aposentos, ajeitar a cama, lavar a louça, espanar os móveis, se não limpasse a calçada. Como usar roupa bonita com sapato sujo.

A maior parte dos vizinhos saía para se cumprimentar com sua vassoura de palha. Certo o encontro às 8 horas para reunir as folhas. Certo o falatório entre as braçadas firmes e ágeis. Os motoristas que passavam não interrompiam as fofocas. Achava lírico. Assim como os guris jogavam futebol de uma garagem a outra, os moradores conversavam de um portão a outro. Existia uma ordem imutável: o pássaro no fio, o gato na janela, o cachorro espiando no pátio e o varredor de cabeça baixa cuidando de seus domínios, disciplinado, nunca avançando no terreno alheio, amontoando os ciscos e gravetos num pequeno monte a São João.

Parece lenda, mas usávamos a rua como um cinto que apertava o muro, um cinto para a casa não cair no desleixo de um terreno baldio. As aparências se mantinham já na entrada. Quando as crianças iam para escola, os pais comentavam quais as vias mais transparentes de vento. Abria-se um pedágio informal da palavra, um controle asseado, uma vigilância dos serviços alheios. Calçada suja sinalizava doença ou divórcio. Minha mãe já entrava em polvorosa: “Coitado de Fulana, faz quatro dias que não recolhe as folhas. O que será que aconteceu?”

Desço a rua Lageado. Disputando corrida comigo, um vazamento desde o início da lomba, uma torrente de água branca e espumosa serpeando as pedras. Muito mais rápida do que meus passos. Não anseio soltar um barquinho de papel para ancorar no esgoto. Não é engraçado, é infinitamente triste. A água, como a rua, não tem mais olhos — não há quem se importe.



Crônica publicada no site Vida Breve

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