Blog do Carpinejar

ZORRILHO

Arte de Albert Bertelsen

Viajava de carro com a família. Meu filho me questionou que cheiro era aquele na estrada.

Era de zorrilho.

– Mas é ruim, né? – ele comentou.

Não achava ruim, apesar de surgir quando o bichinho se sentia ameaçado e em perigo.

Eu me alegrava com o cheiro. Significava que entrava em Uruguaiana. Finalmente vencia os 650 quilômetros de chão.

Abria os vidros para que o vento me trouxesse a lufada característica de ingresso na cidade, o odor vinha envolvido com o sol da manhã batendo nas plantações de arroz ao fundo.

A raposinha era o primeiro aviso que desceria em Uruguaiana. Meu pórtico emocional.

Minha infância voltava intacta com a nuvem do olfato: atravessar os trilhos do trem no inverno, quebrar o gelo do percurso de ferro até a escola União; tirar com os dedos a cal dos muros do Clube Ferro Carril; beber chimarrão na Praça Barão do Rio Branco com pipoca doce; acompanhar o desfile na Avenida Presidente Vargas.

O pai me levava para assistir à Califórnia da Canção. Funcionava como fonoaudiologia para mim. Sofrendo sérios problemas de dicção, ele me convidava para acompanhar as finais, pois consistia no único momento em que não tinha vergonha, perdia a timidez e cantava alto junto com milhares de pessoas. Eu, que mal falava, cantava no festival. Somente cantava em Uruguaiana. A calhandra de ouro morava em meus olhos.

Sempre o zorrilho como carteiro. Sempre o zorrilho oferecendo as boas-vindas.

Podia ser um cheiro ruim, mas era o cheiro de minha meninice. O cheiro de minha esperança. O cheiro de estar em família.

Era o cheiro da fronteira, da possibilidade de ouvir espanhol em Paso de los Libres e misturar idiomas.

Era o cheiro de minha solidão. Quando desistia de perguntar para a mãe se estávamos chegando e tentava descobrir pela paisagem.

Era o cheiro da cumplicidade. Os adultos não me poupavam de nenhum assunto, me reconheciam como homenzinho para falar de coisas sérias e de negócios.

Era o cheiro da amizade, quando conversei pela primeira vez com um cavalo.

Era o cheiro da minha independência, quando troteei pelas coxilhas sem ninguém me acompanhando.

Era o cheiro da diversão, quando colhia as bolinhas de soja caídas do vagão para arremessar nos colegas.

Era o cheiro de que não vivi em vão, de que me lembrava o quanto jamais deixei de ser um menino feliz. Feliz porque aprendi a repartir minhas tristezas em Uruguaiana.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24 e 25/12/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 
17654

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